O Trabalho do Cuidado nos Processos de Alimentos e Guarda: Uma Perspectiva de Gênero
1. Introdução
A divisão do trabalho de cuidado entre homens e mulheres reflete um aspecto central das desigualdades de gênero, com impactos profundos e muitas vezes invisíveis nas relações familiares e na distribuição de responsabilidades financeiras. Nas decisões sobre pensão alimentícia, esse trabalho de cuidado — em grande parte realizado por mulheres — é frequentemente desvalorizado, negligenciando o valor não monetário de suas contribuições. Este artigo busca refletir sobre como a distribuição desigual das tarefas de cuidado afeta a justiça e a equidade nas decisões jurídicas de pensão alimentícia e como o reconhecimento desse trabalho invisível pode ser um caminho para avançar na igualdade de gênero.
2. Desenvolvimento
O trabalho de cuidado envolve uma série de atividades essenciais para o desenvolvimento e o bem-estar dos indivíduos, como a atenção com a saúde, o suporte emocional e a educação dos filhos, lazer e tempo de qualidade. Historicamente e de forma estrutural e cultural, essa responsabilidade recai desproporcionalmente sobre as mulheres, que assumem um papel central, e por que não dizer de sobrecarga, mas pouco reconhecido na criação dos filhos. Em contrapartida, os homens, mesmo que cada vez mais incentivados a participar do cuidado, são menos cobrados socialmente por essa função, o que perpetua um desequilíbrio nas divisões de tarefas e papéis familiares, A falta de uma divisão equitativa de responsabilidades parentais é uma manifestação clara das desigualdades de gênero dentro do Direito de Família.
O Código Civil de 2002 trouxe importantes mudanças, como a introdução da guarda compartilhada, mas sua aplicação prática muitas vezes não reflete a igualdade de responsabilidades. As mulheres, em muitos casos, continuam a ser as principais responsáveis pelo cuidado dos filhos, mesmo em regimes de guarda compartilhada. A falta de uma divisão equitativa de responsabilidades parentais é uma manifestação clara das desigualdades de gênero dentro do Direito de Família, exemplo disso temos quando: um pai se dispõe a cuidar de um filho, ter a guarda de fato do mesmo, é considerado um “herói” e a mãe que decidiu seguir para trabalhar e fica com o filho nos fins de semana ou de forma alternada é julgada da pior maneira possível.
Essa disparidade se manifesta de forma explícita nos processos de alimentos, nos quais a definição do valor da pensão geralmente se concentra na capacidade financeira do pagador, sem considerar o impacto do trabalho não remunerado de cuidado realizado, em sua maioria, pela mãe, além de muitos desses genitores quando ficam com seus filhos por um ou outro final de semana, muitas vezes os deixam com suas avós (mãe do genitor) ou deixam por conta de suas atuais companheiras.
Diante disso, temos uma grande questão aqui, que é a invisibilidade desse trabalho que, embora não monetizado, requer tempo, energia e dedicação, muitas vezes impossibilitando que a cuidadora se dedique a atividades remuneradas, desde que na prática, muitas delas enfrentam dificuldades econômicas, fruto de uma inserção desigual no mercado de trabalho e de uma histórica desvalorização do trabalho feminino, isso sem falar no cansaço físico e mental que adoece essas mulheres que também chegam a nem se perceberem diante dessas situações, e memos quando se notam e pedem socorro de alguma maneira, ainda são julgadas.
Além disso, o papel do cuidado como elemento essencial do desenvolvimento da criança é amplamente reconhecido pela psicologia e pelas ciências sociais, que evidenciam a importância de um ambiente de afeto e segurança para o desenvolvimento integral infantil. No entanto, o sistema jurídico e os processos de alimentos parecem ignorar essa dimensão, refletindo, em muitos casos, uma lógica econômica que subestima o valor do trabalho de cuidado e, com isso, contribui para perpetuar a desigualdade de gênero. Esse quadro reforça a necessidade de políticas que valorizem o cuidado como um serviço essencial, com impactos não apenas na dinâmica familiar, mas também na formação social viabilizando e valorizando a performance, a dedicação o esforço e o trabalho dessas mulheres.
3. Conclusão
A perspectiva de gênero é uma ferramenta essencial para o Direito de Família, na medida em que permite um olhar mais atento e crítico sobre as desigualdades presentes nas relações familiares e suas consequências legais. Ao integrar essa perspectiva, tanto na criação de leis quanto na aplicação jurisprudencial, podemos avançar rumo a uma sociedade mais justa e igualitária, onde as relações familiares sejam regidas por princípios de equidade e respeito mútuo. A superação das desigualdades de gênero no Direito de Família não é apenas uma questão de justiça, mas de construção de uma sociedade verdadeiramente democrática e inclusiva.
Para que o sistema de pensão alimentícia se torne mais justo e equilibrado, é imperativo que o trabalho de cuidado seja considerado um elemento central nas decisões judiciais, passando a integrar a tabela de custos para base do valor da pensão alimentícia. Reconhecer o valor desse trabalho não remunerado representa um avanço em direção à equidade de gênero, promovendo uma divisão mais justa das responsabilidades parentais e valorizando as contribuições femininas que vão muito mais além do aspecto financeiro. A implementação de normas que reconheçam o cuidado como uma responsabilidade compartilhada entre os gêneros poderá contribuir para uma sociedade mais igualitária, em que o valor do cuidado seja finalmente considerado em sua plenitude.
Tereza Gabriela é advogada e membro da Comissão de Direito de Famílias e Sucessões da OAB Subseção de Mossoró.