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ANGÉLICA DAYANE RÊGO DE MELO E RAFAELLA CALDAS LEONARDO OLIVEIRA | 24/06/2025 O uso indevido da Lei de Alienação Parental como mecanismo de retaliação

ANGÉLICA DAYANE RÊGO DE MELO **

RAFAELLA CALDAS LEONARDO OLIVEIRA**

 

A Lei nº 12.318/2010[1], conhecida como Lei de Alienação Parental, surgiu com a digna intenção de proteger crianças e adolescentes de influências indevidas nas relações com um de seus genitores, especialmente em contextos de separações conflituosas. A vedação a alienação parental não se aplica apenas aos genitores, mas também aos demais familiares como avós, tios, padrinhos e tutores. Contudo, a prática forense tem revelado o uso indevido da legislação em alguns casos: sua utilização como instrumento de retaliação e coerção com o intuito de intimidar o outro genitor, inverter o polo de vulnerabilidade ou deslegitimar denúncias legítimas.

A alienação parental tem como intuito prejudicar o vínculo da criança ou adolescente com o outro genitor, ferindo o direito fundamental protegido pela Constituição Federal e pelo Estatuto da Criança e do Adolescente à convivência familiar. Assim, enquanto prática nociva que visa manipular a criança ou adolescente os afastando do outro genitor merece o enfrentamento jurídico. No entanto, é preciso separar o que é legítima proteção do vínculo familiar do que se tornou, em alguns casos, uma estratégia de defesa contra acusações graves, sobretudo quando envolvem disputas judiciais mais amplas, como ações de guarda, regulamentação de visitas e alimentos, desviando o foco da proteção integral da criança para o embate entre adultos.

O uso indevido da Lei de Alienação Parental ocorre quando um dos genitores invoca a lei como forma de deslegitimar denúncias de abuso ou violência feitas pela mãe ou pela própria criança, assim como há genitoras sendo falsamente acusadas de alienação parental como forma de pressão para que desistam de ações de alimentos ou de disputas pela guarda dos filhos. Em vez de servir como ferramenta protetiva e em vez de proteger a criança, a lei passa a ser instrumentalizada como objeto de barganha judicial. Nestes contextos, a lei se afasta de sua missão protetiva e passa a servir como mecanismo de chantagem processual e retaliação emocional.

A atuação do Judiciário deve ser técnica, sensível e contextualizada. É imprescindível que os magistrados contem com o apoio de equipes multidisciplinares qualificadas, com assistentes sociais e psicólogos, que saibam diferenciar um comportamento verdadeiramente alienador de um legítimo exercício do cuidado ou do direito de denúncia. Também é fundamental que o sistema de justiça reconheça que o uso indevido da Lei de Alienação Parental tem sido, em alguns casos, uma ferramenta de opressão e silenciamento contra mulheres e crianças.

É necessário repensar criticamente os caminhos interpretativos da Lei de Alienação Parental para que ela não seja desvirtuada de seu propósito original. O Direito das Famílias deve estar a serviço da proteção integral da criança e do adolescente e da promoção de vínculos saudáveis, e não da perpetuação de disputas e abusos judiciais. O uso indevido da Lei de Alienação Parental como instrumento de retaliação, coerção ou silenciamento é uma distorção grave que precisa ser enfrentada com coragem, sensibilidade e técnica.

Insta salientar que o uso indevido da Lei de Alienação Parental é uma consequência da estrutura social à qual estamos submetidos, na qual a violência contra a mulher pode ocorrer de diversas formas, mas ainda assim ser tratada de maneira natural. Ou seja, mesmo em instituições sólidas e históricas, como o Poder Judiciário, o patriarcado pode se manifestar — seja de forma sutil ou mais expressa — por meio de decisões que penalizam injustamente uma mulher ou desvalorizam sua opinião e trajetória, imputando-lhe uma prática de alienação que não se verifica no mundo fático.

Ciente desse risco, o Conselho Nacional de Justiça emitiu, no ano de 2021, o Protocolo para Julgamento com Perspectiva de Gênero[2], o qual dedica um tópico específico ao uso indevido da Lei de Alienação Parental, orientando magistrados e magistradas a se atentarem para a aplicação desvirtuada da referida norma.

No referido Protocolo, destaca-se que a Lei de Alienação Parental pode ser instrumentalizada para enfraquecer denúncias de agressões e abusos cometidos por ex-cônjuges, bem como para modificar a modalidade de guarda para a unilateral, em favor do genitor. Diante desse cenário, orienta-se que os magistrados e magistradas realizem a escuta protegida da criança ou do adolescente, submetendo-os ao depoimento especial, e façam uso de todos os meios de prova possíveis e necessários, de modo a resguardar os direitos da mulher e da criança antes da prolação de qualquer decisão definitiva.

Não obstante tais considerações, não se pode olvidar que, uma vez que o bem mais tutelado nas ações de guarda é o melhor interesse da criança, a alienação parental — quando devidamente comprovada — deve ser prontamente combatida, pois é direito da criança conviver de forma harmoniosa com ambos os genitores, não podendo ser vítima das mágoas ou ressentimentos que eventualmente subsistam entre eles.

Destarte, a Lei de Alienação Parental (LAP), quando usada de forma correta, mostra-se como uma ferramenta de proteção dos genitores e da criança, para que esta tenha seus direitos de convivência com ambos os pais assegurados, sem a interferência negativa de um deles. Logo, não se pretende negar sua importância nem a necessidade de sua aplicação, devendo-se apenas fomentar que todos os profissionais estejam sempre atentos para que a LAP não seja utilizada, em vez de instrumento de proteção da criança, como mais uma arma patriarcal para denegrir e punir mulheres.

Como advogados(as), temos o dever de garantir que nenhuma legislação seja aplicada fora de seu contexto real e que o sistema de justiça não se torne cúmplice de práticas abusivas travestidas de legalidade. A lei deve proteger, jamais punir injustamente quem cuida, denuncia e protege.

 

**Angélica Melo e Rafaella Caldas são advogadas e membros da Comissão de Direito de Famílias e Sucessões da OAB Subseção de Mossoró. 

 

[1] https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2007-2010/2010/lei/l12318.htm

[2] https://www.cnj.jus.br/wp-content/uploads/2021/10/protocolo-para-julgamento-com-perspectiva-de-genero-cnj-24-03-2022.pdf